O que um jaleco pode representar? Começo esse relatório com uma pergunta simples de se responder, mas que nesse dia, causou-me inúmeras outras perguntas mais conturbadas. Eu, ainda uma inexperiente estudante do quarto semestre, tentando praticar anamnese (a arte de entrevistar pacientes), indo a um quarto no 5º andar, Ala Norte, em busca de um paciente que pudesse me ajudar nesse grande empreendimento na carreira universitária. Ás 12 h e 30 min do dia 19 de fevereiro, lá estou eu, pedindo a relação e obviamente a permissão para poder entrevistar pacientes. Inicialmente eu estava calma, mas uma calma ansiosa, diga-se de passagem. Nem eu esperava minha reação tão “inesperada”. Chego ao quarto, Dona I. K. S., 45 anos, tomava calmamente seu chimarrão, acompanhada de seu cônjuge, Seu D. As pernas estavam bambas, olhei para os lados, desviando um pouco o olhar, aproximei-me do leito e pedi se não seria inoportuna a ocasião para apenas conversar com a paciente, visto que sou uma principiante na área. O consentimento instantâneo me alegrou, procurei a cadeira e sentei perto da senhora, buscando uma proximidade confortável para ambas (eu, a estudante um tanto confusa e insegura e a paciente, um tanto apreensiva). Tudo então parecia ter sumido de minha cabeça inesperadamente, o famoso “branco adrenérgico”. A descarga de adrenalina fora tão grande que meus pensamentos se esvaíram e minhas idéias eu mal conseguia concatenar. Respirei fundo, tentei lembrar de alguns pontos fundamentais da aula teórica, tentando buscar um mínimo de segurança em mim e comecei a entrevista. Nada que uma pergunta aberta não possa quebrar o gelo e aliviar lentamente a nossa tensão. Antes da pergunta, algo já havia chamado a minha atenção, pois o braço esquerdo da senhora estava enfaixado e ela demonstrava expressões de dor aos mínimos movimentos. Olhando para o braço e, nas minhas idéias, já fiz um juízo: “certamente aquela senhora quebrou o braço”. Logo depois, para minha surpresa, os fatos não eram bem esses. Apesar das suposições, guardei-as para mim e comecei com uma pergunta um tanto imbecil para quem está com o braço engessado. O que a trouxe aqui? “Dor, muita dor em meu braço, responde a senhora com um olhar vago”. Conversa vai e conversa vem, ela me contou que quebrou seu braço em Abril do ano passado, para minha surpresa, e que os ossos “não haviam se grudado”, segundo a paciente. Novamente, estava eu a buscar hipóteses para tal, será tão difícil nos mantermos passíveis em nossos próprios pensamentos? Ingenuamente eu pensava em osteoporose, ou quem sabe, alguma alteração óssea familiar, mas o diagnóstico não cabia a mim. Continuei com as perguntas, e o motivo da internação eram as dores cortantes, gritantes, alucinantes que a paciente passara a sentir em seu braço nos últimos seis meses, sendo abrandadas apenas com morfina. Além disso, ela apresentava dores tenebrosas nas costelas, motivo pelo qual ela passava sentada evitando o mínimo esforço. Após explorar a queixa principal e sua HDA, tentei arriscar outras perguntas, como sua profissão, seu cotidiano, alimentação, dados familiares, outras internações, histórico familiar, uma revisão de sistemas corriqueira e muito simples, um pouco de sua infância (se sofria de algum distúrbio desde a mesma). E não sei como, apesar de tanto nervosismo, paradas bruscas em que eu gaguejava ou me perdia nas próprias perguntas, consegui dados relevantes e até explorar mais os mesmos como: a paciente não é hipertensa nem diabética; não fuma nem bebe; apresenta edema no pulmão, sendo diagnosticado há 20 anos, piorando à noite, com mudanças na temperatura e dias quentes e secos, incomodando-a muito com falta de ar e toma remédio para epilepsia desde 1994. A entrevista se encaminhava para o final, mesmo não passando dos 10 min, tive a impressão de que ela durou horas. O cônjuge sempre participativo na entrevista levantou e buscou alguns exames oferecendo para que eu desse uma olhada, uma lida ao menos. Sim, eu só ficaria na lida, porque convenhamos, o que eu com minha “vasta” experiência poderia lhes dizer? Apenas ficar com um olhar compenetrado de “Uhm hum”. Eram exames de raio X da região torácica. Detive-me a ler, mas um frio percorreu a minha espinha e eu tive vontade de sair correndo daquele quarto, eu realmente não soube o que fazer quando eu li as palavras: “lesões osteolíticas metastáticas nas 6ª, 7ª e 8ª costelas”. Eu gelei, fiquei com os olhos fixos nas folhas, demorei-me um pouco para terminar de ler, mas confesso que depois de ler “metastáticas” meus olhos já não decifravam mais nada. Sei que sou extremamente expressiva, por isso tive que mais uma vez me controlar muito, achar forças de não sei onde para manter a naturalidade. Mas por dentro eu desmoronava, eu só queria chorar feito uma criança, eu só desejava não estar ali. Aquela senhora, tão serena e confiante nas suas respostas, dizendo sempre que não era nada, que tinha fé, e os médicos estavam fazendo inúmeros exames e conversariam com ela ainda no mesmo dia. Eu não conseguia mais olhar para Dona I. Apenas dobrei as folhas, entreguei-as para o cônjuge e tudo o que fiz foi dizer “nada”. Passado o nada, pedi se ela tinha algo mais a me acrescentar, estimei melhoras e para minha surpresa e comoção escutei as seguintes palavras: “a doutora pode voltar quando quiser”. Depois do doutora, eu segurei minhas lágrimas. Sei que fui melodramática, mas eu não consegui ficar indiferente a toda essa situação. Nesse dia eu vi o que um jaleco pode fazer. Contando com a minha inexperiência vi que o jaleco a abrandou um tanto, senti que foi mais ou menos como se as pessoas confiassem tudo de mais íntimo delas, buscassem um conforto, uma solução, uma esperança vinda de nossos lábios. Acima de tudo percebi também que elas buscam amor, carinho e atenção; clamam por respostas e muita compreensão. É essa a impressão que um jaleco pode causar. Mas o jaleco, ao contrário do que muitos pensam, não nos torna imunes ao sofrimento, às crises que passamos com porquês existenciais, vendo tantas doenças, tristezas e perdas. Aquela senhora e o que de trágico a envolve não saiu de minha cabeça durante todo o dia. Eu não fiquei imune, eu me senti fraca, eu me senti impotente, estava apenas tentando aprimorar minha aproximação com pacientes e aquela senhora, quem sabe, definhando lentamente. Acho que toda minha tensão me deixou com esses pensamentos. Todas as expectativas, medos e ansiedades se misturaram e fizeram com que eu explodisse na hora. Agora mais calma, tenho a noção do que me espera, temos que ser fortes e em primeiro lugar, para sermos bons, excelentes médicos, precisamos entender a necessidades dos outros e primeiramente aprender a lidar com nossos próprios sentimentos.
Texto de Ana Claudia de Souza, minha prima.Gostei muito do relátório feito por ela. Passei por uma situação dolorosa parecida de alguém muito próximo e acho mais do que válido a opinião de uma futura profissional de medicina, em uma situação delicada da vida de uma pessoa.